“Em Maurília, o viajante é convidado a
visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões postais
ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica mas com uma
galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças
com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. “
Instigante e oportuno esse trecho
de “As cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino. Enquanto viajo pelo país
conhecendo inúmeras cidades, cresce a impressão de que a maioria delas era
melhor no passado.
Os velhos cartões postais que
minha memória revisita neste momento, mostram-me a praça com coreto em
Mamanguape/PB, terra onde minha família materna se estabeleceu, e onde
adorávamos passar férias na casa de meus avós. Correr em torno da praça, no
final da tarde, era diversão obrigatória.
Noutro cartão postal guardado em
minhas lembranças, volto para a João Pessoa dos anos 80 e 90. Com 11 anos, ia
para escola de ônibus, sozinho ou junto com meus irmãos, sem a companhia de
meus pais. Andávamos a pé todo o centro da cidade e lembro como isso era
divertido. Jovens de classe média não tinham medo das ruas.
Hoje, muito do que fazíamos não é
mais recomendável. Aliás, para muitos, é inimaginável andar despreocupadamente
pelas ruas. Temos medo. Tornamo-nos prisioneiros da violência gerada por um ambiente
urbano extremamente hostil.
Refiro-me à violência no seu
sentido mais amplo, que vai além dos temas ligados à segurança pública:
exclusão social, (i)mobilidade urbana, colapso nos serviços públicos básicos (especialmente
na saúde), intolerância ao coletivo e outros aspectos da vida em sociedade que
estamos construindo (ou destruindo) em pleno século XXI. Tornamo-nos esquizofrênicos
pós-modernos, resultado, dentre outras coisas, da restrição gradativa do uso do
espaço público.
Estamos confinados em carros,
condomínio e shoppings. Sufocados em um padrão de consumo que nos obriga a
correr diariamente em busca daquilo que, na maior parte das vezes, não
precisamos. O essencial fica cada vez mais distante.
É interessante escrever isso no
momento em que dois acontecimentos me chamaram atenção.
O primeiro, ainda de madrugada,
saindo do hotel para o aeroporto em São Luís. O Uber que me levava ficou sem
gasolina, exatamente na frente de um acidente entre dois carros, em que um dos
motoristas sequer conseguia ser acordado pela polícia.
O outro, já dentro do avião,
quando perguntado pela aeromoça se eu gostaria de biscoito doce ou salgado,
respondi que tanto fazia. Fui pego de surpreso com sua generosidade em me dar
um pacotinho de cada.
Que inusitado: fiquei mais
surpreso com o segundo acontecimento do que com o primeiro. Constato que os
atos de violência já fazem mais parte do nosso cotidiano do que os gestos de
gentileza. Percebo que vivemos, como definido por Hannah Arendt “a banalização
do mal”.
Reforço esse sentimento,
lembrando que, atualmente, um dos temas que está em discussão na pauta legislativa
dos municípios no Congresso Nacional, é o uso de armas de fogo por agentes de
trânsito. Poxa vida, que bom seria se estivéssemos discutindo a obrigatoriedade
de instalação de mais praças e coretos em nossas cidades.
Ao viajar por aí, acabo me
sentido um pouco como Marco Polo, o intrépido viajante, cujos diálogos sobre as
cidades que integram o império do grande Kublai Khan são o objeto do livro de
Calvino. Socorro-me de mais um trecho, em que me apoio para escrever essas
linhas:
“- Sim, o império está doente e,
o que é pior, procura habituar-se às suas doenças. O propósito das minhas
explorações é o seguinte: perscrutando os vestígios de felicidade que ainda se
entrevêem, posso medir o grau de penúria. Para descobrir quanta escuridão
existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes. “
Fica aqui, então, registrado o
meu protesto, seguindo a inspiração de Calvino: por mais moças com sombrinhas
brancas no lugar de fábricas de explosivos!
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