quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Por mais sombrinhas brancas




“Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. “


Instigante e oportuno esse trecho de “As cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino. Enquanto viajo pelo país conhecendo inúmeras cidades, cresce a impressão de que a maioria delas era melhor no passado.

Os velhos cartões postais que minha memória revisita neste momento, mostram-me a praça com coreto em Mamanguape/PB, terra onde minha família materna se estabeleceu, e onde adorávamos passar férias na casa de meus avós. Correr em torno da praça, no final da tarde, era diversão obrigatória.

Noutro cartão postal guardado em minhas lembranças, volto para a João Pessoa dos anos 80 e 90. Com 11 anos, ia para escola de ônibus, sozinho ou junto com meus irmãos, sem a companhia de meus pais. Andávamos a pé todo o centro da cidade e lembro como isso era divertido. Jovens de classe média não tinham medo das ruas.

Hoje, muito do que fazíamos não é mais recomendável. Aliás, para muitos, é inimaginável andar despreocupadamente pelas ruas. Temos medo. Tornamo-nos prisioneiros da violência gerada por um ambiente urbano extremamente hostil.

Refiro-me à violência no seu sentido mais amplo, que vai além dos temas ligados à segurança pública: exclusão social, (i)mobilidade urbana, colapso nos serviços públicos básicos (especialmente na saúde), intolerância ao coletivo e outros aspectos da vida em sociedade que estamos construindo (ou destruindo) em pleno século XXI. Tornamo-nos esquizofrênicos pós-modernos, resultado, dentre outras coisas, da restrição gradativa do uso do espaço público.

Estamos confinados em carros, condomínio e shoppings. Sufocados em um padrão de consumo que nos obriga a correr diariamente em busca daquilo que, na maior parte das vezes, não precisamos. O essencial fica cada vez mais distante.

É interessante escrever isso no momento em que dois acontecimentos me chamaram atenção.

O primeiro, ainda de madrugada, saindo do hotel para o aeroporto em São Luís. O Uber que me levava ficou sem gasolina, exatamente na frente de um acidente entre dois carros, em que um dos motoristas sequer conseguia ser acordado pela polícia.

O outro, já dentro do avião, quando perguntado pela aeromoça se eu gostaria de biscoito doce ou salgado, respondi que tanto fazia. Fui pego de surpreso com sua generosidade em me dar um pacotinho de cada.

Que inusitado: fiquei mais surpreso com o segundo acontecimento do que com o primeiro. Constato que os atos de violência já fazem mais parte do nosso cotidiano do que os gestos de gentileza. Percebo que vivemos, como definido por Hannah Arendt “a banalização do mal”.

Reforço esse sentimento, lembrando que, atualmente, um dos temas que está em discussão na pauta legislativa dos municípios no Congresso Nacional, é o uso de armas de fogo por agentes de trânsito. Poxa vida, que bom seria se estivéssemos discutindo a obrigatoriedade de instalação de mais praças e coretos em nossas cidades.

Ao viajar por aí, acabo me sentido um pouco como Marco Polo, o intrépido viajante, cujos diálogos sobre as cidades que integram o império do grande Kublai Khan são o objeto do livro de Calvino. Socorro-me de mais um trecho, em que me apoio para escrever essas linhas:

“- Sim, o império está doente e, o que é pior, procura habituar-se às suas doenças. O propósito das minhas explorações é o seguinte: perscrutando os vestígios de felicidade que ainda se entrevêem, posso medir o grau de penúria. Para descobrir quanta escuridão existe em torno, é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e distantes. “

Fica aqui, então, registrado o meu protesto, seguindo a inspiração de Calvino: por mais moças com sombrinhas brancas no lugar de fábricas de explosivos!




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